segunda-feira, 9 de novembro de 2009

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Folha ao Vento e a Disposição do Guerreiro


"Procurar a perfeição do espírito do guerreiro é o único empreendimento digno de nossa virilidade."

[...]

" - Você se sente como uma folha à mercê do vento, não é? - disse ele, por fim, olhando fixamente para mim.

Era exatamente como eu me sentia. Ele parecia ter empatia em relação a mim. Disse-me que meu estado de espírito lembrava-lhe uma canção e começou a cantar num tom baixo; sua voz era muito agradável e as palavras me transportaram. 'Como estou longe do céu onde nasci. Uma imensa nostalgia me invade o pensamento. Agora que estou tão só e triste, qual folha ao vento, às vezes quero chorar, às vezes quero rir de saudade. '

Ficamos um tempo enorme sem dizer uma palavra. Afinal, Dom Juan rompeu o silêncio.

- Desde o dia em que você nasceu, de uma maneira ou de outra, as pessoas têm feito alguma coisa a você.

- Está certo - concordei.

- E têm feito coisas a você contra sua vontade.

- É verdade.

- E agora você está indefeso como uma folha ao vento.

- Certo. É assim que é.

Falei que as circunstâncias de minha vida, por vezes, tinham sido arrasadoras. Escutou com atenção, mas não conseguia saber se ele estava sendo simpático ou se realmente se interessava, até que percebi que ele estava tentando disfarçar um sorriso.

- Por mais que você sinta pena de si mesmo, vai ter que mudar isso - disse ele, em voz baixa. - Não condiz com a vida de um guerreiro.

Ele riu e tornou a cantar a canção, mas mudou a entonação de certas palavras; o resultado foi um lamento cômico. Observou que o motivo pelo qual eu gostara da canção fora porque em minha própria vida eu não fizera outra coisa senão encontrar defeito em tudo e lamentar-me. Não pude discutir com ele. Tinha razão. No entanto, eu acreditava ter motivos suficientes para justificar minha impressão de ser como uma folha ao vento.

- A coisa mas difícil deste mundo é adquirir a disposição de um guerreiro - disse ele - Não adianta ficar triste, queixar-se e achar justificativas para isso, acreditando que alguém está sempre nos fazendo alguma coisa. Ninguém faz nada a ninguém, muito menos a um guerreiro.

- Você está aqui, comigo, porque quer estar aqui. A essa altura, já devia ter assumido plena responsabilidade, de modo que a idéia de estar à mercê do vento fosse inadmissível.

[...]

- Precisamos da disposição de guerreiro para todos os atos - disse ele. - Senão, ficamos fracos e feios. Não existe poder numa vida que não tenha essa disposição. Olhe para si. Tudo o ofende e perturba. Geme e reclama e acha que todo mundo está abusando de você. É uma folha à mercê do vento. Não existe poder em sua vida. Que sentimento feio isso deve ser!

'Um guerreiro, ao contrário, é um caçador. Calcula tudo. Isso é controle. Mas, uma vez terminados seus cálculos, ele age. Entrega-se. Isso é abandono. Um guerreiro não é uma folha à mercê do vento. Ninguém pode empurrá-lo; ninguém pode obrigá-lo a fazer coisas contra si ou contra o que acha certo. Um guerreiro é preparado para sobreviver e ele sobrevive da melhor maneira possível. '

Gostei da posição dele, embora considerasse nada realista. Parecia simplista demais para o mundo complexo em que eu vivia.

Ele riu de meus argumentos e eu insisti que a disposição de um guerreiro não podia ajudar-me a dominar a sensação de estar ofendido, ou de ser ferido de fato pelo ato de meus semelhantes, como no caso hipotético de ser fisicamente atormentado por uma pessoa cruel e maldosa, colocada num posto de autoridade. Ele confessou que o exemplo era adequado.

- Um guerreiro pode ser ferido, mas não ofendido - disse ele. Para um guerreiro, não há nada de ofensivo nos atos de seus semelhantes, enquanto ele estiver agindo dentro da disposição correta.

'Na outra noite, você não ficou ofendido com a onça. O fato de ela nos perseguir não o irritou. Não ouvi maldizê-la, nem que ela não tinha o direito de nos perseguir. Podia ter sido uma onça cruel e maldosa, ao que você soubesse. Mas isso não pesou para você, quando estava tentando evitá-la. A única coisa que interessava era sobreviver. E isso você fez muito bem.

'Se estivesse sozinho e a onça o tivesse pegado e estraçalhado até à morte, não lhe ocorreria sequer reclamar ou ficar ofendido com os atos dela.

'A disposição de um guerreiro não é assim tão rebuscada para seu mundo ou de qualquer pessoa. Você precisa dela para poder livrar-se de todas as besteiras.'

Expliquei meu raciocínio. A onça e meus semelhantes não estavam num pé de igualdade, porque eu conhecia os maneirismos íntimos dos homens, enquanto que não sabia nada a respeito da onça. O que me ofendia em meus semelhantes era que eles agiam maldosamente e em plena consciência.

- Sei disso, sei disso - falo pacientemente. - Conseguir a disposição de um guerreiro não é coisa fácil. É uma revolução. Considerar a onça e os ratos-d'água e nossos semelhantes como iguais é um ato magnífico do espírito do guerreiro. É preciso poder para fazer isso.

(Viagem a Ixtlan - Carlos Castaneda. Ed. Record)